ATIVIDADE FÍSICA E SAÚDE: DISCURSOS QUE CONTROLAM O CORPO

Elaine Melo de Brito Costa*
Silvana Venâncio**

RESUMO

A Educação Física, no século XIX, construiu o corpo saudável com intuito militar e industrial, baseada nos discursos: atividade física e saúde. Atualmente, mídia, tecnologia e ciência os propagam com outros objetivos. Este estudo tenta ampliar as relações desses discursos, a partir da mídia e biotecnologia para pensar a prática do profissional de Educação Física, sobretudo evitando uma intervenção acrítica generalizante: “atividade física é saúde”. O estilo de vida moderna parece influenciar doenças cardiovasculares, obesidade, depressão e estresse. Novamente a atividade física é um remédio. Paralelamente, a mídia utiliza-se deste contexto tornando o corpo produto de consumo e transforma a saúde em sinônimo de beleza.

PALAVRAS-CHAVE: Corpo – Saúde – Atividade Física – Mídia

INICIANDO

A história da Educação Física constrói diversas concepções e funções do corpo. Parte desta trajetória foi discutida em nosso estudo O Corpo Feminino no Encontro com a Antiginástica. O texto ora apresentado desenvolve-se a partir de nossa dissertação, que utilizou o método de pesquisa “história de vida” e como instrumento de produção de dados, a entrevista semi-estruturada.

Neste momento, não se pretende apresentar a trajetória do corpo na Educação Física, porém, apenas fazer um recorte de sua história atual discutindo as interfaces entre mídia, atividade física e saúde. Elas são relevantes para compreendermos o interesse pelo corpo como produto de comercialização, consumo e controle.

Sabe-se que a ciência hodierna tende a desenvolver estudos numa dimensão em que autores como MERLEAU-PONTY (1994) escrevem obras defendendo a compreensão do corpo como sendo o próprio indivíduo, perdendo então a idéia de posse (de “ter um corpo”) e do dualismo.

Mas, a mídia (não somente ela) desconstrói esse pensar sobre o corpo à medida que o torna objeto de consumo e manipulação do próprio ser humano, que parece não ter história.

Os meios de comunicação de massa constroem e apresentam à sociedade o corpo desejável, “perfeito”, transformado e “feliz”: protótipo do belo. Normalmente, cabe aos profissionais de Educação Física uma prática que reproduza esse protótipo. Nesse aspecto, a beleza do corpo padrão se detém exclusivamente na aparência: vestir-se de acordo com a moda, exercitar-se três horas por dia, alimentar-se à base de produtos diet e light, transformar-se a partir dos recursos biotecnológicos. Tudo isso em nome da “saúde” e da beleza!

O CORPO SAUDÁVEL AOS OLHOS DA MÍDIA

Atualmente, é mister perceber a pluralidade que envolve o corpo a partir dos avanços tecnológicos advindos de redes de computadores, a presença marcante da mídia e as transformações corporais causadas por horas desenfreadas de atividade física, anabolizantes, implantes, cirurgias plásticas, lentes de contato, próteses e medicamentos ...

Para SANTANA (2002), corpo, tecnologia e mundo trocam suas experiências, por isso são caracterizados como sistemas abertos. A constante troca entre estas três dimensões favorece suas próprias modificações. Complementando esse pensar, CARDOSO (1997) aborda que enquanto se discute, de um lado, o “desaparecimento” do corpo nos espaços virtuais, de outro, a mídia o torna fortemente presente. Sem entrar nesta questão, pode-se dizer que hoje, de fato, ele está bastante exposto e exaltado em suas formas, motivo pelo qual seu poder ressalta sua base biológica e fisiológica.

Essa dimensão biológica ganha forças, mesmo ao afirmar que ele não se constitui de partes isoladas, músculos, articulações, ossos e veias.

A biologização do corpo ganha manchetes de jornais, revistas, outdoors, anúncios de TV. Nelas se reproduzem os discursos da saúde, atividade física, moda, dieta, cirurgias plásticas... Como trata SANT’ANNA (2000, p. 81) “mais sutil e difuso do que um poder que reprime e aliena, há exercícios de poder em que o corpo, em vez de ser maltratado, é adulado, e em vez de ser negado, é colocado no centro das atenções, das problematizações médicas, dos questionamentos da mídia e da cultura”.

Nas academias de ginástica, calçadões e clubes são explícitas a exposição e a busca de um corpo padrão presente na mídia: saudável e belo. Essa realidade é reflexo de programas de televisão, internet, revistas masculinas e femininas que criam a cada dia um estereótipo do “corpo em forma”. Corpo que propaga “saúde” e beleza padrão, vende um ideal “atingível” por meio de atividade física, dieta, lipoaspiração, implante de silicone etc. Daí, o crescimento quantitativo de academias de ginástica, produtos dietéticos, cirurgias plásticas ...

A saúde, revestida no discurso da beleza, ludibria as pessoas tornando-as compulsivas, muitas vezes. Elas “correm” para a atividade física, pois aí está a salvação, como foi no século XIX. O pior é que o efeito pode ser contrário! O encontro com profissionais de Educação Física costuma reforçar o mesmo discurso de controle do corpo na relação: atividade física e saúde/beleza.

Recentemente, o corpo desfrutou de uma reversão de valores que se inicia com a ascensão na cultura de consumo e um lugar na crescente era tecnológica e informatizada, gerando significados sociais (WILLIAMS E BENDELOW, 1998). O corpo na modernidade é convocado pela mídia e pelas relações de consumo para vender estilos de vida saudáveis, como nas propagandas da eterna jovialidade, a erotização do corpo e o sexo desenfreado que produzem a compulsão e a “escravidão” da atividade física.

Corroborando os autores supracitados, FEATHERSTONE (1996) afirma que se forja um ambiente para as pessoas se verem envolvidas pelo consumo do corpo (acréscimo nosso). Desencadeia-se uma relação de “dominação” na busca pelo produto desejado (corpo saudável) e, conseqüentemente, criam-se estilos de vida pouco naturais. É a fome de consumo, do “querer mais” atividade física. Desconsideram-se os limites do próprio corpo para torná-lo mais musculoso, viril, sensual, esbelto e jovem. Características de saúde para a mídia. Luta-se por uma inclusão num grupo em que as pessoas detenham tal perfil para trazer-lhes benefícios sociais, pessoais e profissionais, e ainda revelar o nível sócio econômico.

Como permanecer jovem, atlético ou retardar o envelhecimento numa sociedade de culto ao corpo? A indagação gera uma necessidade de encontrar meios como resposta e que, ao mesmo tempo, rompam com as limitações do corpo. Esse sentimento acontece juntamente com a valorização atribuída aos produtos e às técnicas para “ser ou ter” um corpo belo. Além disso, corpos “sarados, turbinados” (termos vigentes na mídia como sinônimos de saúde e beleza) promovidos com os discursos da atividade física e saúde interessam à economia, ao padrão moral e ao discurso científico de cada época. Interessa também, eticamente, aos profissionais de Educação Física, estejam eles nas academias de ginástica, clubes ou escolas.

Percebe-se atualmente significados sociais semelhantes: saúde, bem-estar, juventude e beleza. Tais significados são assimilados, freqüentemente, por influência da mídia e da indústria comercial. Elas investem em publicidade para vender “receitas para a saúde”, objetivando tornar o corpo um artigo de comercialização. O principal local de “venda” deste produto acaba sendo as academias de ginástica, os clubes e até mesmo a escola. Vai depender do profissional de Educação Física assumir ou não a função de “vendedor”.

Devemos estar atentos, pois o corpo, hoje, é manuseado pelos avanços biotecnológicos. Eles são mais rápidos e imediatistas se comparados à atividade física. Além disso, garantem status. A atividade física torna-se um instrumento auxiliar da biotecnologia que mantém a forma do corpo “esculpido”. O “corpo em forma” passa a integrar o estilo de vida de muitas pessoas, consoante suas crenças, nível sócioeconômico e cultural. Ele significa “saúde” para jornais e revistas cujas reportagens tratam o emagrecimento, exercícios físicos, dietas e o corpo “ideal”. Os meios de comunicação de massa estão sempre apresentando, genericamente, dicas e receitas para a meta do corpo perfeito. As reportagens abordam variados assuntos: valor calórico da alimentação, tipos de exercícios físicos, cosméticos, queima calórica em diferentes atividades diárias e outros produtos e serviços.

Recentemente, o programa Globo Repórter (setembro de 2003) apresentou entre as reportagens uma avaliação sobre o gasto calórico em atividades cotidianas como lavar carro, louças, brincar com os filhos, entre outras. As atividades domésticas foram compreendidas como atividade física e enaltecidas pela perda calórica. Porém, outros aspectos como prazer, orientação postural e sociabilidade não foram mencionados.

Mas, qual a relevância disso? O importante é o consumo calórico para promoção de saúde. Será mesmo?!

A patologia da modernidade nesse contexto é a colonização do “mundo vivido” pelo “mundo sistêmico”, na expressão de HABERMAS (1989). Verifica-se a superposição da ação técnica da mídia, da utilização de meios, tais como propagandas de ginástica, cirurgias plásticas, dietas etc., com o intuito de determinar o consumo de uma imagem ideal (saudável/bela), socialmente reconhecida, em que impera o sistema econômico e político.

A mídia, de forma massificada, induz muitas vezes a ressaltar a imagem do corpo saudável e belo, como formas de constituir a identidade. É um retorno à vivência da “era narcisista”, valorizando a imagem corporal da jovialidade, beleza e saúde. Talvez, em razão de uma liberdade limitada, os indivíduos tornem-se mais prisioneiros de uma aparência programada e descartável.

Neste sentido, SILVA (1999) vem corroborar esta reflexão afirmando que a economia de mercado articula meios eficazes e sutis de dominação em que, através de seus artifícios de manipulação de massa, faz desaparecer a consciência da dominação naqueles que são dominados. Para a autora:

a televisão enquanto posto avançado da mídia, admitida real ou potencialmente em todos os lares do planeta, vai processando esse embotamento das consciências. Seu trabalho é lento e suave e, por isso, extremamente eficaz: acaba por fazer parte daqueles que o assistem, na medida em que representa um prolongamento não só de seus olhos e ouvidos, mas uma excitação dos seus nervos, do seu apetite, dos seus desejos. Modela seus princípios éticos e estéticos e se sobrepõe ao sistema de educação formal, que sucumbem frente a seus encantos (p. 157,158).

Foucault (1998) identificava que o biopoder é elemento principal de desenvolvimento do capitalismo. Para ele, o biopoder requer um grande investimento do poder sobre os corpos, em que saúde, bem-estar, higiene, sexualidade são transformados em preocupações básicas para controle ou disciplina dos indivíduos:

o exercício do biopoder, por exemplo, pode ser sedutor, chegando a legitimar a importância do corpo e a defender sua saúde e bem-estar. Tudo se passa como se na esfera do biopoder fosse necessário falar e se preocupar cada vez mais com o corpo para melhor controlá-lo (SANT’ANNA, 2000, p. 81, 82).

Quanto mais próximo o corpo estiver da imagem ideal, mais alto será seu valor e poder. Daí a ação do sistema econômico e político. O mundo dos atletas esclarece a discussão. Os atletas adequados ao perfil da mídia, patrocinadores e dirigentes possuem maior aceitabilidade social, poder e retorno financeiro. Todos ganham: atletas, clube, mídia, multinacionais. Os espectadores são consumidores em potencial do uniforme dos atletas, logomarcas e imagem corporal (penteados, cortes de cabelo). A atividade física é chamada para reproduzir diversos corpos numa mesma imagem: a do atleta que está na mídia.

É a aparência do corpo, no discurso da saúde, que dita, geralmente, o caminho em busca de poder e status. A aparência detém o controle social, político e econômico. Conseqüentemente, esta realidade influencia as relações sociais, pois o corpo preconizado como “saudável/belo” é requisito para a inserção dos indivíduos num grupo determinado. E ademais, revela muitas vezes o nível sócio-econômico comprovado pela transmutação do corpo a partir de aulas em academias de ginástica acompanhadas de personal training, cirurgias plásticas, uso de anabolizantes e implantes de silicone.

A cirurgia plástica (estética), anteriormente, era uma prática que indicava o envelhecimento do corpo. Algo inadmissível numa sociedade que “vende” e consome jovialidade. O quadro mudou. Afilar nariz, retirar rugas, fazer lipoaspiração, implantar silicone atingem as diversas faixas etárias. O desejo desenfreado de modificar-se corporalmente é preocupante, quando se perde ou se desconsidera a noção ética. Como afirma SANT’ANNA (1993, p. 252): “com a promoção das aparências, uma cultura visual, fundada sobre o detalhe anatômico, é chamada a se sofisticar”.

Os recursos estéticos, atribuídos à prática da atividade física e à saúde, utilizados atualmente, reforçam nas pessoas a versão de determinados estilos de vida, que na verdade não lhes pertencem.

Certamente HABERMAS (1989) diria que é a perda da identidade humana.

Ao dialogarmos com a idéia do filósofo percebemos nesse contexto uma repetição de atitudes e posturas não pertencentes ao indivíduo e sim à mídia, que constrói uma imagem perfeita. Descaracteriza-se a pessoa humana, pois ela não consegue se desvencilhar, muitas vezes, do discurso utilizado pelos meios de comunicação de massa. A imagem do corpo pode vir associada aos aspectos positivos ou negativos da personalidade humana, sempre de acordo com o jogo de significados culturais. GROGAN (1999) insiste na necessidade de identidades femininas livres, independentes da beleza padronizada, suscitando novas idéias que possam ser reabsorvidas pelas mulheres, na tentativa de fugirem do discurso da feminilidade. A preocupação da autora deve-se ao fato de as mulheres serem alvos explícitos da cultura de consumo.

O corpo pode então, construir, ser construído e alterado a partir do contexto sociocultural influenciado também pela mídia. Como afirma CARDOSO (1997, p. 3):

[...] nossa aparência física é, em grande parte, culturalmente programada. A aparência que hoje ostentamos é de algum modo aprendida. Conformamos e adaptamos o corpo segundo padrões sociais estabelecidos, aprendemos a nos movimentar e a nos posicionar, de acordo com circunstâncias socialmente determinadas.

Construir, modificar o corpo... Nesse propósito, a transmutação do corpo, respaldada na biotecnologia é, de fato, um advento inegável da modernidade. Estejamos atentos que outrora ao discutir sobre o corpo, retornava-se principalmente a Descartes para abordar o binômio dualista mente/corpo, matéria/espírito. Sem desconsiderar a importância desse referencial teórico, como ponto de partida para o avanço nesta discussão, é oportuno ressaltar que atualmente as reflexões dessa temática atingiram dimensões talvez inimagináveis. CARDOSO (1997) afirma que o corpo agora é uma transmutação biotecnológica.

Assim como esse autor, este estudo ao refletir sobre transmutação do corpo, também considera o termo cyborg, criado por Manfred Clynes, em 1960, para designar um organismo cibernético. Essa terminologia refere-se à relação entre o organismo e a máquina, atribuindo-se ao corpo uma dimensão de transformação constituída de aspectos biológicos e artificiais, inatos e adaptados pela técnica. A nova dimensão tecnológica do corpo traz conseqüências para a sua natureza e seus próprios limites. Acrescenta CARDOSO (1997, p.10): a figura do cyborg nos ajuda a compreender o cenário que procuramos compor: juntar mitos e ferramentas, representações e realidades encarnadas. Talvez uma das marcas que distinguem nossa época, o fato de a tecnologia estar realizando antigos sonhos da humanidade. No caso do cyborg deve-se considerar que sua existência, além de realizar algumas destas junções, desfaz antigos conceitos, produzindo compreensões inesperadas.

Relacionando a idéia do autor ao corpo, discute-se a incorporação das cirurgias plásticas, implantes, lentes de contato, próteses, vacinas, naturalmente, sem perceber a transformação corporal associada aos avanços biotecnológicos, e ainda princípios éticos para tratar a saúde humana. Como trata SANTANA (2002), percebe-se que o corpo, a biotecnologia e o meio ambiente são sistemas abertos que se modificam mutuamente.

É nessa relação que também se revela a fragilidade da identidade humana ao crer que manter o “corpo em forma” significa melhor aparência física, saúde, bem-estar e beleza. Vive-se entre a imagem real e a imagem ideal! As imagens em capas de revistas, outdoors, embalagens de cosméticos etc. são de pessoas esbeltas e olhos brilhantes, corpos quase despidos, vestidos com roupas de ginástica ou biquínis.

A imagem corporal do obeso, contrária à imagem ideal, é constantemente estigmatizada e serve de motivo de risos e deboche, como no filme O Professor Aloprado. Vale lembrar a idéia de SOARES (1998, p. 18) sobre a educação do corpo, no tocante à ginástica: “os corpos que se desviam dos padrões de uma normalidade utilitária não interessam”. A idéia da autora refere-se ao século XIX, no entanto, tal afirmação ainda é atual no século XXI quando pessoas que fogem do padrão vigente chegam às academias de ginástica ou escolas já “seduzidas” pela urgência de emagrecer com atividade física para serem saudáveis.

Os corpos “diferentes” só interessam à mídia, academias de ginástica e clubes como o mau exemplo. A partir deles faz-se a propaganda “terrorista”. Com isso, vendem-se mais roupas esportivas, receituários de emagrecimento e aumenta-se o número de adeptos à atividade física. É preciso reforçar que o corpo magro ou musculoso não é exemplo maior de saúde. Estejamos atentos aos casos de anorexia e usuários de anabolizantes.

O avanço tecnológico propiciou aos indivíduos utilizar este progresso como recurso estético relacionado à saúde, satisfazendo os desejos de diminuir barriga, eliminar celulites, gorduras localizadas, aumentar ou diminuir seios, e ainda atingir o padrão de beleza. A intenção da mídia, operacionalizada nas academias de ginástica, escolas e centros cirúrgicos, é estabelecer uma aparência unificada, como se fosse possível uma vida saudável homogênea. Para GROGAN (1999), a busca da padronização estética vincula-se à auto-estima, saúde, sucesso, jovialidade, elegância e aceitabilidade social. Complementando o pensamento da autora, para SILVA (1999, p. 124), o que se pode perceber é que há estratégia de marketing em torno de uma expectativa de corpo e de ‘padrões de beleza’ criados a partir da normatividade da ciência, sendo que essa passa depois, a ser influenciada por aqueles mesmos padrões que ajudou a fundamentar, contribuindo, dessa forma, para uma nova relação dos indivíduos com sua dimensão corporal.

Os implantes de silicone e a lipoaspiração retratam a imagem “enlatada” da mulher norte-americana no Brasil. Os recursos cirúrgicos foram associados à biotecnologia para alterar forma, tamanho, composição do corpo e conseqüentemente atender ao interesse da saúde/ beleza feminina. Para LÉVY (1998), estes implantes e as próteses confundem o limite entre o mineral e o vivo: óculos, lentes de contato, aparelhos ortodônticos, marca-passos, aparelhos auditivos, filtros externos funcionando como rins sadios etc.

Enfatiza-se que este estudo não busca visualizar a transmutação do corpo apenas como um recurso estético, mas chamar à atenção deste artifício como elemento de interesse social, político e econômico. O entrelace da biologia com a tecnologia possibilita também um tempo maior de vida e melhor condição de saúde a partir de transplantes de órgãos, marca-passos, próteses e outros, desde que não se perca a questão ética.

Certamente o corpo passa por transmutações. Usam-se óculos ou lentes de contato por motivos de saúde ou estético. Utilizam-se aparelhos auditivos para não “se perder” os sons e as vozes dos que estão próximos. Vivenciam-se transplantes de órgãos em busca de uma vida melhor ou mais prolongada. Evita-se a reprodução humana por meio de contraceptivos artificiais. Enfim, recorre-se a implantes e cirurgias plásticas freqüentemente para se atingir uma imagem corporal idealizada.

Em busca da imagem ideal assume-se e almeja-se, explicitamente, as técnicas que transformam o corpo. Forma-se paulatinamente uma legião de “cyborgs”. Provavelmente, os personagens de Matrix e de Gattaca já saíram das telas do cinema, da ficção científica e apresentam-se como uma realidade, pois os avanços biotecnológicos possibilitam a manipulação e transformação dos corpos.

Estes personagens já existem no esporte de alto nível, presentes e crescentes em cada olimpíada. Os atletas submetem-se a procedimentos anabólicos para atingir resultados e superar seus limites corporais desprovidos de atitude ética. O corpo é manipulado para alcançar o pódio, através do discurso em que se proclama: esporte é saúde. O interesse é outro: poder, status e dinheiro. O contexto é crítico à medida que a beleza do esporte passa a ser controlada pelos interesses sociais, políticos e econômicos.

Recorre-se então à ciência. De um lado, ela busca desenvolver exames antidoppings mais eficientes; de outro, procura meios de aperfeiçoar os tipos de doppings existentes para que também não sejam identificados. E assim o corpo é violentado por um ideal que, geralmente, não pertence ao atleta e sim à economia do país, aos patrocinadores e aos meios de comunicação de massa. O atleta é ingênuo? Aparentemente não, na verdade, ele é livre para decidir ser “escravo” e “vender saúde” com a própria imagem.

Como compreender o corpo humano na atividade física, por exemplo? NÓBREGA (1999) lembra que este novo olhar sobre o corpo oferece espaço para uma discussão da bioética a partir de questionamentos sobre a propriedade do corpo e/ou sua comercialização, assim como sobre a identidade do ser humano. Deve-se perceber os dois lados da moeda em relação aos avanços biotecnológicos na transformação dos corpos. Afirma a autora: se por um lado essa revolução somatoplástica pode contribuir com a readaptação ou reconstrução de corpos mutilados, restaurando aspectos funcionais, a adesão irrefletida pode ser perigosa, no sentido de mutilar a identidade corporal. O ressurgimento do corpo na atualidade, fundado nas próteses e no modelo cibernético traz consigo o ressurgimento do dualismo, em novas bases, apontando uma defasagem do corpo em relação às possibilidades da bioengenharia [...]. Um novo mentalismo ressurge com toda força na cultura contemporânea, onde a emergência das funções corporais são substituídas pela virtualidade, tornando-se objeto cibernético. Por outro lado, há também a necessidade de um convívio com as tecnologias que estão presentes em todos os campos da atividade humana, criando interfaces ou novas possibilidades para o corpo (p.43).

Conscientes do viés para discutir bioética na transmutação do corpo, optamos neste momento por focalizar mais atentamente a construção de corpos perfeitos pela mídia e a atividade física como fonte de saúde, beleza e poder.

Retomando à biotecnologia e ao corpo, LÉVY (1998) afirma que se criam atualmente inúmeras formas de construir ou remodelar o corpo por meio de atividades físicas, dietas e cirurgias plásticas. Pode-se ainda alterar o metabolismo, utilizando-se medicamentos e tantos outros recursos disponíveis. A realidade mostra aos estudiosos e interessados no assunto que todos os dias o estilo de vida da humanidade passa por uma “exterioridade” complicada onde se entrelaçam aspectos econômicos, institucionais e tecnocientíficos.

O corpo está sendo transformado a partir de práticas sociais, culturais e tecnológicas. O ser humano modifica seu modo de viver, que sustenta a validade de sua imagem corporal e suas práticas originais. Mas, ressalta-se que as mudanças e transformações envolvendo a compreensão do corpo, atualmente, estão sendo focalizadas pelas interações socioculturais, históricas e biotecnológicas.

O corpo na modernidade é destaque. As informações sobre ele crescem a cada dia. Vive-se o momento em que o corpo tem sido conscientemente explicitado, modificado, polemizado, explorado e comercializado. A mídia, especificamente, passa a propaganda da vida homogênea e uniforme a partir de um corpo esbelto e saudável, através da atividade física.

A singularidade de cada indivíduo não pode ser esquecida, tampouco industrializada e massificada, “vendida” em academias de ginástica, spas, clubes e escolas. Isso seria a perda da identidade humana, enquanto ser corpóreo em sua essência e existência. Sobre isto Nóbrega (1999, p. 44) alerta:

nesse processo desenfreado de globalização corremos o risco da massificação, da submissão, perdemos as nossas referências mais significativas, como as do nosso corpo, na dispersão das próteses (transplantes, cirurgias modificadoras, entre outros recursos da biomedicina, bioengenharia e inteligência artificial). A parceria com a tecnologia é fundamental, mas a cultura não se reduz à realidade virtual, há outras referências que dimensionam a cultura, para além da ordenação binária dos objetos cibernéticos, por exemplo, a sensibilidade expressiva da corporeidade.

FINALIZANDO

Nesse momento é importante realçar a idéia de HABERMAS (1989) sobre o enfraquecimento da ação comunicativa quando uma parte dos profissionais de Educação Física está deixando de apresentar um posicionamento crítico e ético diante da ação da mídia e dos avanços biotecnológicos. Estes profissionais estão paulatinamente valendo-se do uso da razão instrumental ao expor e transformar o corpo através de atividades físicas, dietas, drogas e do consumo de imagens ideais de atletas. Eles corroboram os discursos de controle do corpo que a mídia produz ao fazer da atividade física (associada à biotecnologia) uma possibilidade de corresponder ao padrão de beleza em nome da saúde.

Considerando a relevância da razão instrumental na organização social (esclarecendo que Habermas não a desconsidera), enfatiza-se que a questão não é abandonar “nossas vaidades”. Porém, é preciso clareza para perceber que o corpo “saudável” construído pela mídia, bem como as cirurgias estéticas, têm objetivos lucrativos, consumistas e de controle. E ainda ter consciência de que assim como a mídia cria corpos perfeitos, também se encarrega de substituí-los na mesma velocidade com que os apresentou. É comum assistir todos os dias à queda de um atleta por não fazer gols ou estar fora de forma física, ao mesmo tempo, em que outros são glorificados exatamente por atitudes contrárias. Para a mídia, em geral, esses corpos são objetos de uso “descartáveis”, à medida que surgem outros mais jovens, esbeltos e saudáveis.

Alguns profissionais de Educação Física deixam de expressar-se como “atores competentes” (expressão de Habermas) quando não estabelecem sua identidade profissional a partir de uma relação intersubjetiva e ética. Isso implica numa crise de identidade revelada pela invasão da ação instrumental da mídia em sua vida profissional. É preciso que saibam que o corpo foi modificado e visto diferentemente em cada momento da história. A padronização do corpo existe no cotidiano e é percebida freqüentemente como produto da transformação histórica, em virtude de mudanças ocorridas na imagem corporal considerada atraente e saudável, no decorrer do tempo.

Atualmente, as ações da mídia e da biotecnologia expressam um contexto plural e complexo do corpo. Ao considerar a exposição do corpo na sociedade promovida pela mídia, bem como, suas transformações desencadeadas pelo evento organismo-máquina, enfatiza-se que a condição do corpo é plural. Nesta pluralidade, deve-se perceber a historicidade do corpo. Isso facilita a compreensão de que a questão não é somente liberá-lo do uso do mercado, contido nas academias de ginástica, escolas, clubes, da comercialização desenfreada da mídia, mas também da moralidade a que ainda está submetido. É mister saber que há necessidade de quebrar a dicotomia liberdade/opressão, que se desdobra em recompensa/castigo, não para negar o corpo, mas para compreendê-lo quando se criar outros horizontes de sentido, como aborda SANT’ANNA (2000, p. 86). Para a autora não se trata de uma “busca simplesmente por mais saúde, mais sexo, mais expressão corporal, mais liberdade e mais prazer. E, sim, por corpo, sexo, saúde, liberdade e prazer atravessados, constituídos e sustentados por condutas éticas”.

Acredita-se que a identidade humana pode ser estabelecida a partir da restauração de atitudes e valores, tais como: sociabilidade, respeito, alteridade e cooperação. Atitudes estas baseadas na comunicação que significa um diálogo construtivo ligado aos sentimentos, idéias e críticas dos que estão nas escolas, academias de ginástica, clubes ... É, portanto, chegada a hora de profissionais de Educação Física envolvidos nos discursos da atividade física e saúde, e também toda a sociedade se “desvencilharem” da ação teleguiadora da mídia e se apresentarem como sujeitos históricos e competentes a partir de uma prática fundamentada na ética, nos limites e nas potencialidades do corpo do outro. Isso implica numa intervenção consciente e crítica. É importante entender que a formação do conhecimento de cada praticante de atividade física está diretamente relacionada à intervenção do professor de ginástica, musculação, dança, esportes etc. Nesta relação se constitui a humanidade de forma intersubjetiva a partir da dialogicidade (o eu e o outro) e da comunicação inspirada por uma ética da intersubjetividade.

 

Physical Activity and Health: body controlling discourses

ABSTRACT

In the 19th Century, physical education built the healthy body for military and industrial aims, based on the discourses of physical activity and health. Currently, media, technology and science disseminate such discourses for other objectives. This study aims at broadening the boundaries of such discourses, from the starting point of media and biotechnology, in order to reflect upon the work of the physical education professional, avoiding a non-critical, generalizing intervention, such as the discourse that “physical activity is health”. Contemporary lifestyles seem to lead to heart problems, obesity, depression, and stress. Again, physical activity is advertised as the cure. At the same time, the mass media use this context by turning the body into a consumer product, and by turning health into a synonym for beauty.

KEY-WORDS: body -health -physical activity -mass media.

 

Actividad fisica y salud: discursos que controlan el cuerpo

RESUMEN

La Educación Física, en el siglo XIX, construyó el cuerpo saludable con el propósito militar e industrial, baseada en discursos: actividad física y salud. Actualmente, media, tecnología y ciencia los propagan con otros objetivos. Este estudio intenta ampliar las relaciones de estos discursos, a partir de la media y biotecnología para pensar la práctica el profesional de Educación Física, sobretodo evitando una intervención acrítica generalizante: “actividad física es salud”. El estilo de vida moderna parece influenciar enfermedades cardiovasculares, obesidad, depresión y estrés. Nuevamente la actividad física es un remedio. Paralelamente, la media se utiliza de este contexto tornando el cuerpo producto de consumo y transformando la salud en sinónimo de belleza.

PALABRAS-CLAVE: Cuerpo -Salud -Actividad Física - Media

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WILLIAMS, S. J.; BENDELOW, G. The lived body - sociological themes, embodied issues. London: Routledge, 1998.

Recebido em: novembro de 2003.
Aprovado em: dezembro de 2003.
Endereço para correspondência:
Elaine Melo de Brito Costa
e-mail: lainemelo@yahoo.com.br

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