AS MANIPULAÇÕES DO CORPO NA REPRESENTAÇÃO DA IMAGEM SOCIAL DE ALUNAS NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA

Leila Salvivi*

Mauro Myskiw**

RESUMO

O objetivo do trabalho foi analisar a imagem social de meninas (adolescentes) nas aulas de Educação Física, numa turma de 3º ano do Ensino Médio de um Colégio Estadual na cidade de Marechal Cândido Rondon, Paraná, procurando verificar a articulação entre as representações das alunas e as manipulações corporais produzidas por elas para fazer valer a imagem requerida nas interações vivenciadas durante as aulas. Tendo como referência as noções de representação e de manipulações corporais, foram realizadas observações e entrevistas semiestruturadas para descrever e analisar os atributos da cara apresentada pelas alunas e os esquemas da linha de atuação delas em relação às manipulações corporais. Desenvolvida a análise em categorias, foi possível concluir que a representação da imagem social das adolescentes nas aulas de Educação Física é tributária das manipulações corporais desenvolvidas por elas e que as escolhas destas manipulações se caracterizam como estratégias relacionadas às outras pessoas da turma e à situação (educacional).

PALAVRAS-CHAVE: Manipulações Corporais; Representação; Imagem Social; Alunas; Educação Física.

1 INTRODUÇÃO

Até mesmo a mais distraída das pessoas é capaz de perceber que nas últimas décadas ocorreram mudanças significativas na forma como as mulheres se embelezam, se sentem, se apresentam e se comportam. Se na primeira metade do século XX as principais virtudes da mulher eram procriar filhos fortes, cuidar dela mesma, do lar e do esposo, preservando a integridade familiar e social da época (GOELLNER, 2003), não há dúvidas que nas últimas décadas houve mudanças no campo das aparências, da sexualidade, da família e do trabalho feminino, sobretudo como ajuste obrigatório à tríade beleza-juventude-saúde (DEL PRIORE, 2000). A imagem social da mulher mudou e essa transformação passou pela forma cultural dela se relacionar com seu corpo, aprendendo a exercitar, cada vez mais, diferentes maneiras de ser que estão imbricadas às situações do cotidiano e variam de acordo com cada ambiente onde ela está inserida.

A imagem social da mulher é definida e entendida, neste trabalho, em relação às representações que ela desenvolve nas interações para fazer-se reconhecer a partir de determinados atributos sociais, cujo esforço engloba, cada vez mais, as manipulações corporais. Este entendimento está vinculado à noção de representação desenvolvida e apresentada por Goffman (1970, 1975, 1988) e à noção de manipulações corporais desenvolvida e apresentada por Le Breton (2003, 2006). Metaforizando, Goffman (1975,1988) descreve que o indivíduo vive como se estivesse em um palco, numa peça de teatro. Cada pessoa empenha-se em controlar a imagem que dá ao outro, sendo o ator principal de sua própria existência/imagem, representando o tempo todo; em algumas vezes, se afasta de sua identidade real, vestindo uma máscara para parecer como deseja que as outras pessoas o vejam, camuflando ou ocultando estigmas1 . Le Breton (2003, p. 28), por sua vez, aborda as manipulações do corpo no sentido de corpo-acessório, afirmando que “a anatomia não é mais um destino, mas um acessório da presença, uma matéria-prima a modelar, a redefinir, a submeter ao design do momento”.

O fenômeno social da diversificação na maneira de ser da mulher e estas noções de representação e de manipulação corporal instigaram o olhar para um ambiente em particular, a escola. O propósito do estudo foi analisar a imagem social de meninas (adolescentes) nas interações durante as aulas de Educação Física, numa turma de 3º ano do Ensino Médio de um Colégio Estadual na cidade de Marechal Cândido Rondon, Paraná. Entendendo a Educação Física um momento no qual o corpo se encontra em maior exposição (MAZONI, 2005), procurou-se verificar a articulação entre as representações sociais das alunas e as manipulações corporais produzidas por elas para fazer valer a imagem requerida nas interações vivenciadas durante as aulas. Isto é, buscou-se compreender como as alunas manipulam ou cuidam do corpo para projetar sua imagem social nas interações, desenvolvendo uma performance capaz de manter equilibrado o que “elas pensam sobre si” (imagem social virtual) e o que “os outros pensam sobre elas” (imagem social real).

Como estratégia teórico-metodológica para verificar as representações sociais das alunas nas interações durante as aulas foram descritos atributos e esquemas do que Goffman (1970) denominou de cara e linha. Goffman (1970, p. 13) definiu a cara como o “[...] valor social positivo que uma pessoa reclama efetivamente para si por meio da linha que os outros supõem que foi seguida durante determinado contato. A cara é a imagem da pessoa delineada em termos de atributos sociais aprovados [...]”, precisa ser aceita e coesa em relação à situação que está inserida. Já, a linha, esclarece o autor, refere-se a um “[...] esquema de atos verbais e não verbais por meio dos quais [a pessoa] expressa sua visão da situação, e por meio dela sua avaliação dos participantes, em especial de si mesma. Não importa que a pessoa tenha ou não a intenção de seguir uma linha; descobrirá que na prática assim o faz” (p. 13), atuando de forma a transmitir a impressão que interessa, evitando ser desacreditada ou incoerente.

Na pesquisa, ao observar a linha, foram descritos, fundamentalmente, os esquemas relacionados à manipulação do corpo para fazer valer a imagem reclamada, considerando o corpo como um suporte, uma matéria inacabada, variável em relação ao estado do sujeito, cujo propósito é atender às demandas da representação de si (LE BRETON, 2003). Além das modificações desencadeadas no corpo (remoção, deformação, acréscimos, inscrições na pele), também foram consideradas como manipulações os tratamentos, acessórios, encobrimentos, desnudamentos, usos, controles e dissimulações corporais presentes nas situações das aulas de Educação Física.

2 METODOLOGIA

Os atributos da cara e os esquemas da linha de atuação foram abordados de forma descritiva, a partir de: 1) observações semiestruturadas de aulas de Educação Física de uma turma de 3º ano do Ensino Médio de um Colégio Estadual, na cidade de Marechal Cândido Rondon, Paraná, no período de agosto e setembro de 2008; e 2) entrevistas semiestruturadas com as alunas da turma. Antes do levantamento das informações foram enviadas cartas de solicitação e autorização à escola e aos pais, juntamente com um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, informando os objetivos do estudo e as condições da pesquisa.

Primeiramente, foram realizadas, em duas aulas, observações de forma gerais das 18 alunas da turma, a fim de identificar algumas semelhanças e diferenças entre elas no que se refere à cara e à linha. Tendo como base estas informações, foram selecionadas seis alunas para serem observadas por mais duas aulas (estas alunas foram identificadas com as letras de A a F). A escolha de apenas seis alunas foi necessária por tratar-se de um estudo das interações cara-a-cara, inspirado nas obras de Goffman (1970, 1975, 1988), envolvendo muitas informações das interações. O critério para a escolha destas alunas foi o fato de se comportarem distintamente durante as aulas, e também por adotarem maneiras bem marcadas (típicas) em relação à forma de representar sua imagem social. Após as observações, em outras duas aulas, foram realizadas entrevistas com as seis alunas.

As observações das interações foram realizadas de forma semiestruturada. Em um formulário previamente elaborado, com campos específicos, foram registradas as caras (isto é, a imagem primária que se obtinha ao observar as alunas, correspondente a um valor social positivo que elas reclamavam para si nas interações da aula) e as linhas de atuação (ou seja, a enunciação pelos atos verbais e não verbais sobre as manipulações corporais das alunas para fazer valer a impressão que interessava – remoção, deformação, acréscimos, inscrições na pele, tratamentos, acessórios, encobrimentos, desnudamentos, usos, controles e dissimulações). As entrevistas também foram semiestruturadas. Do acumulado de informações das observações, foram elaborados roteiros de questões específicos para cada aluna, com perguntas sobre as caras e as linhas. As entrevistas foram desenvolvidas de forma individual na sala de aula, enquanto os demais colegas participavam das aulas de Educação Física, e registradas em um gravador. Posteriormente foram transcritas e submetidas à análise, juntamente com as informações oriundas das observações.

Com as anotações das observações e as entrevistas transcritas em mãos, foi desenvolvida a análise das informações, por meio de um processo de codificação e categorização, seguindo uma estratégia de redução através de categorizações e paráfrases (FLICK, 2004). A codificação representou uma operação de fragmentação dos textos em unidades de significados (num total de 101), isto é, em frases, trechos ou mesmo parágrafos que caracterizavam um atributo da cara ou um esquema da linha, e a categorização um esforço de agrupar as unidades de significados em uma paráfrase que representou, em linhas gerais, a cara e a linha das alunas.

3 MANIPULAÇÕES DO CORPO NA REPRESENTAÇÃO SOCIAL

A análise das observações e entrevistas deu origem a duas categorias, que foram desenvolvidas na forma de subcapítulos. Nestes, os resultados e as discussões foram apresentados no sentido de evidenciar: 1) a cara reclamada pelas alunas; 2) a linha de atuação desenvolvida por elas nas interações; e 3) um exercício de interpretação, no qual os resultados são articulados com outros estudos.

3.1 ALUNAS VAIDOSAS, FORTES E ATIVAS: O CORPO COMO CAPITAL

A cara parafraseada como aluna vaidosa forte e ativa foi representada por três das seis alunas (A, E, D) e está relacionada ao valor social positivo de ter/ser um corpo bem cuidado, especialmente em relação ao ideal de magreza, fundado na preocupação com aparência e na expectativa da sedução, isto é, no olhar dos outros. Engloba, ainda, atributos de uma adolescente forte, desafiadora, livre e ativa nas interações das aulas de Educação Física. A performance desenvolvida por estas alunas (envolvendo cuidados e manipulações corporais) para fazer com que esta imagem seja aquela que as outras pessoas acreditem foi constituída pela seguinte linha de atuação:

• Cuidados com a forma corporal: as alunas se fazem reconhecer pela exposição do corpo ou suas partes, daí o cuidado em administrá-lo como um empreendimento. Exemplo disso é a afirmação da aluna A: Comecei a cuidar da alimentação há uma semana, comer mais verduras, porque percebi que tava engordando demais

• Cuidados com o que pode ou não aparecer nas interações: apresentaram o anseio por roupas que valorizassem determinadas partes do seu corpo. A aluna que apresentava o corpo magro/torneado optou por usar blusas coladas ao corpo e calças do tipo legging, o que deixa os contornos do corpo bem visíveis. Outra, por estar acima do peso, optou por usar camisetas e shorts curto, destacando as pernas e ocultando a barriga.

• Cuidados com os olhos: usam lápis e rímel, e em algumas vezes sombra, nos tons da roupa que estão usando, disseram que sentem a necessidade de destacar o olhar. [...] eu sinto o rosto apagado sem maquiagem, principalmente no olho, é um lugar do rosto que eu gosto que apareça mais, afirmou a aluna E;

• Cuidados com os cabelos: contaram que fazem hidratação nos cabelos, preocupam-se com a cor e o corte, e sempre que possível gostam de alisar o cabelo. Sobre esse cuidado, a aluna D explicou que [...] cabelo pra mim é a marca da pessoa. Eu sempre estou fazendo alguma coisa pra não cair na rotina, eu mesma corto e pinto [...] já tive cabelo vermelho, me sentia poderosa.

• Cuidados com as unhas: estavam compridas e bem cuidadas. Uma aluna destacava com desenhos de flores e mudança de cores.

• Uso de acessórios: eram grandes e chamativos, em sua maioria brincos compridos, pulseiras coloridas e muitas delas, de diferentes materiais (acrílico, metal), colares com pingentes grandes e normalmente na cor prata. [...] eu gosto bastante de coisa grande, coisa que chama a atenção mesmo, explicou a Aluna A, na entrevista.

• Participação ativa nas aulas e enfrentamento dos meninos: foi observado que as alunas mostraram enfrentar os meninos (quando os times são mistos) e liderarem os times femininos. Têm habilidades esportivas e parecem gostar das aulas práticas pelo fato de se empenharem, independente da modalidade esportiva. Sobre esse tipo de participação, duas alunas disseram que: Eu amo jogar bola, qualquer esporte me fascina, na hora do jogo eu me transformo, viro um guri [...]. Eu vou em cima dos guris mesmo [...], as meninas todas têm medo e eu não, eu vou em cima, quero tirar a bola, quero fazer a diferença no jogo (Aluna A); Eu gosto de ir de goleira porque parece que o goleiro é a parte fundamental do time e eu gosto de ser o fundamental lá, todo mundo vai ver se eu levar um gol, se eu não levar, ou tem atitude ou não tem (Aluna D).

• Relacionamento com os colegas: foi possível observar que uma aluna somente conversava com grande parte do grupo (meninos e meninas) durante o jogo propriamente dito, enquanto as outras duas destacaram essa característica ainda no trajeto da sala de aula até a quadra esportiva, ou outro local onde seria realizada a prática. O relacionamento com os colegas, afirmou a Aluna E, se enfatiza durante as aulas de Educação Física, na sala converso mais com a minha amiga [nome da amiga], mas na hora do jogo eu falo com todo mundo. A respeito dessa participação em grupo, a Aluna D relata: [...] odeio fazer coisas sozinha e, como nas aulas de Educação Física é tudo em grupo, é tudo em equipe, aí eu participo, porque eu gosto mesmo de grupo.

• Marcas corporais2 : duas alunas apresentaram marcas corporais. Uma, um piercing de pedra vermelha no nariz, e a outra, uma tatuagem com borboletas no tornozelo e um piercing prata no nariz (mais tarde, durante a entrevista, constatou-se que essa aluna também tinha um piercing na língua). A Aluna D descreve os motivos e os significados dos piercings e da tatuagem para ela: [...] piercing no nariz porque eu achava muito lindo, e na língua foi porque eu sentia vontade; quando eu vi nas meninas parecia que elas eram fortes e eu pensei que eu também sou assim, sou uma pessoa forte, sou uma pessoa que persiste mesmo, e coloquei mais pra demonstrar esse lado forte, que não teve medo de furar a língua [...]; eu fiz (três borboletas, que significa transformação e eu fiz bem no momento em que eu tava ficando mais madura, que eu vim morar sozinha.

Esta linha de representação desenvolvida pelas alunas A, D e E, por meio de manipulações corporais, para fazer os outros acreditarem na cara de adolescentes vaidosas, fortes e ativas, revela que, nas interações das aulas de Educação Física, a aparência corporal é tão relevante que a apresentação física de si parece valer socialmente pela apresentação moral, tal como argumenta Le Breton (2006). Desse modo, as manipulações do corpo, a maneira de se vestir, de ajeitar o rosto, de cuidar das unhas, visam fundamentar atributos corporais culturalmente aceitos e entendidos como favoráveis no grupo social. A vaidade e a magreza, a valorização da aparência na expectativa da sedução são valores sociais positivos, pois se vivencia uma época de “estetização da vida cotidiana”, um fenômeno que, para Featherstone (1995, p. 98-100), está relacionado à existência de um projeto para transformar a vida numa obra de arte, para pôr em evidência as questões estéticas.

O projeto está em andamento quando as alunas se utilizam de artimanhas corporais para fazer valer e reconhecer a impressão que interessa, ocultando possíveis estigmas, como foi possível verificar no caso de uma aluna que estava acima do peso e ansiava por parecer magra. Ela optou por vestimentas que disfarçavam a barriga saliente – que, de acordo com o estudo de Siqueira e Faria (2007) e de Albino e Vaz (2008), não é tida como uma marca corporal vinculada à beleza e à saúde – e que evidenciem as pernas onde tem uma tatuagem. Segundo estudo realizado por Sabino (2000), a representação do que é belo para o corpo das mulheres se radica em classificações que priorizam o ponto de vista masculino e sua preferência, sendo as pernas um desses locais – chamando assim a atenção para essa “parte” do corpo e desviando o olhar para outras que não se enquadram num padrão social esteticamente belo.

Ao colocar em evidência as questões estéticas por meio de manipulações da aparência corporal na expectativa da sedução, o corpo, nas aulas de Educação Física, passa a figurar como um capital, no sentido utilizado por Goldenberg (2006, 2007) em sua análise do significado do corpo da mulher na sociedade. A administração do corpo (LE BRETON, 2003) como um capital está relacionado com uma tomada de posição das alunas no espaço da Educação Física, para marcar seu reconhecimento em relação aos outros (as alunas delicadas e protegidas, como será apresentado na sequência, e os meninos).

Além disso, a participação nas atividades esportivas das aulas de Educação Física em igualdade ou em enfrentamento à participação dos meninos, deixa transparecer uma resistência ao discurso social do corpo feminino como fraco e submisso. O envolvimento das mulheres no esporte foi discutido por Adelman (2003). Esta autora reflete sobre o fato da participação no esporte estar articulada com uma ruptura do ideal de feminilidade caracterizado pela fragilidade e submissão corporal da mulher. É também por meio dos esportes que se desenvolve a noção de mulher ativa, autodeterminada, sem cair no risco de ser caracterizada como “anormal”. Significa dizer que na participação ativa durante as aulas de Educação Física, as alunas vaidosas, fortes e ativas não estão apenas competindo por um ponto ou um gol, estão fazendo um esforço para fundamentar uma imagem social.

A dinâmica da resistência e do enfrentamento subjacentes à cara das adolescentes vaidosas, fortes e ativas fica bastante evidenciada na produção das marcas inscritas no próprio corpo (piercing, tatuagem). O que estas marcas nos dizem é que a resistência e o enfrentamento das alunas ostentam uma ideia de subversão de padrões, significando que pertencem a si mesmas com uma segurança tamanha que a exposição do corpo não lhes causa vergonha ou embaraço. É nesse sentido de legitimidade sobre a manipulação do próprio corpo como quem escapa das coerções, que Le Breton (2003) relaciona o crescente sucesso das marcas corporais “[...] à idéia implícita de que o corpo é um objeto maleável, uma forma provisória, sempre remanejável, da presença fractal própria” (p. 36), estando associado em inúmeras sociedades “[...] a ritos de passagem em diferentes momentos da existência ou estão vinculadas a significados precisos dentro da comunidade” (p. 38).

3.2 ALUNAS DELICADAS E PROTEGIDAS: O CORPO COMEDIDO

A cara intitulada de aluna delicada e protegida, como uma representação de valores sociais positivos, refere-se a uma exposição comedida do corpo, sem, no entanto, deixar de lado os cuidados com a aparência (para com o olhar dos outros), que devem ser discretos e delicados, deixando a salvo dos questionamentos (protegido) o ideal de feminilidade. Para legitimar essa cara (representada por três alunas – B, C, F) a linha de atuação desenvolvida esteve caracterizada por:

• Cuidados com a forma corporal: no discurso das alunas está presente o esforço de gestão do corpo, com ênfase na saúde. [...] eu cuido muito da alimentação, acho que é de família também, afirmou a Aluna B. A mesma preocupação foi descrita pela Aluna F: No final de semana como mais coisas pesadas e doces, dai durante a semana eu controlo um pouquinho, como mais frutas.

• Discrição dos cuidados corporais (embelezamentos): as alunas, durante as aulas, demonstraram preocupação com a aparência, cuidando para não atrair o olhar em virtude desse aspecto. [...] não gosto de coisa que chama muita atenção, porque tem gente muito preconceituosa, e, se ver alguma coisa chamativa, já vão logo pensando coisas, argumentou a Aluna C. Com esse mesmo sentido, a Aluna B relatou: [...] gosto das cores claras, acho que são mais bonitas, também não gosto de coisas espalhafatosas, que chamam muito a atenção. Aluna F fala que Eu não uso maquiagem! Não gosto, nunca usei. [...] As pessoas que me rodeiam me conhecem sem maquiagem, se eu usasse iriam perceber e eu iria chamar muita atenção. A Aluna C afirma não fazer nada de “diferente” nos cabelos, eu cuido, mas sempre está assim, gosto dele assim, é liso, e eu me sinto bem, eu gosto de deixar ele solto [...], não faço nada no cabelo, nem luzes nada, é liso natural.

• Uso de acessórios delicados e discretos nas aulas: brincos pequenos, poucas e finas pulseiras, sempre em cores claras. Brinco muito grande chama muita atenção, e isso não combina comigo, eu gosto de brinco mais pequenininho delicado, afirmou a Aluna C. A aluna B não apresentou nenhum acessório durante todo o período de realização da entrevista. O uso dos acessórios está vinculado ao local das interações, como explicam duas alunas: eu gosto de usar acessórios para sair, mas para vir no colégio não, principalmente nas aulas de Educação Física (Aluna F); a gente tem que dividir as coisas, para fora a gente pode se arrumar mais, e no colégio é só estudar, não precisa se arrumar para ninguém (Aluna C).

• Escolha das roupas que não marcam o corpo: as alunas aprovam o uso obrigatório do uniforme ou de roupas que não evidenciam o corpo. Quando questionadas se usariam outro tipo de roupa caso não houvesse a obrigação do uniforme, responderam que: viria de uniforme, me sinto melhor assim” (Aluna F); Eu sempre venho de uniforme, no colégio eu acho até bom vir de uniforme [...] (Aluna B); Se pudesse vir sem uniforme, usaria calça jeans meio termo, que não marca muito e não que aperta e blusa que não marque muito e não seja muito larga e tênis (Aluna C).

• Participação em um grupo mais restrito: apresentaram preferência por pequenos círculos de amizade, na maioria das vezes tinha preferência por uma amiga. A aluna B confirma essa observação, ao afirmar: [...] cumprimento [os colegas], mas amizade eu tenho os meus amigos que eu confio, uns poucos são da sala.

• Limites da exposição do corpo nas aulas de Educação Física: ficou constatado que as alunas participam das aulas por obrigação. Não gosto nem um pouco de fazer Educação Física e de nenhum esporte, faço por obrigação de nota (Aluna B); [...] eu não participo quando é junto com os piás, e eu não gosto de jogar com eles, principalmente futebol ou futsal, porque eles são muito brutos, achando que as meninas são mais fraquinhas, (Aluna F). Uma aluna apresentou atestado médico para não participar das atividades das aulas.

Por meio dessa linha de atuação desenvolvida pelas três alunas para fundamentar coerentemente a cara delicada e protegida nas interações, elas reclamam, efetivamente, uma visão distinta por parte das outras pessoas que participam das aulas. Estas alunas não querem passar despercebidas do olhar dos outros, mas projetam uma apresentação que procura deixar o corpo a salvo dos questionamentos que possam surgir. Por isso, minimizam a sua exposição, são discretas quanto ao uso de acessórios e roupas, vinculam o cuidado com a aparência à saúde. Procuram, em relação às alunas vaidosas e magras (apresentadas na categoria anterior), se distanciar do uso ordinário do corpo como um capital a ser gerenciado e investido nas interações das aulas. Engendram uma performance diferente, para fazer com que as pessoas acreditem nesse desprendimento do corpo, o que lembra o ethos aristrocrático e a moral burguesa.

A representação social das alunas delicadas e protegidas incorpora o que Elias (2001) denominou de ethos aristocrático no jogo figurativo da Sociedade da Corte, na medida em que compreende uma grande habilidade delas para observar a cena, definir a situação em que se encontra, controlar as emoções, escolher os parceiros e delimitar a imagem que projeta aos outros. Esta imagem social apresentada nas aulas de Educação Física tem relação com virtudes de uma moral burguesa, descrita por Goellner (2003), em estudo sobre o corpo feminino na primeira metade do século XX, como o dever da mulher de cuidar do seu corpo, mas não exibir seus atributos físicos de forma exacerbada, o que poderia atrair o olhar de outrem em demasia, distorcendo a imagem de “mulher ideal”. É nesse sentido que, como valor social positivo da cara, as alunas delicadas e protegidas possibilitam a exibição do corpo feminino, ao mesmo tempo em que promovem estratégias de controle sobre a imagem a ser representada nas aulas de Educação Física, como uma espécie de temor à desmoralização frente à exibição.

Ao considerar que os corpos revelam o tempo e o espaço onde foram educados e reconstroem passados da mesma maneira que projetam o futuro, Goellner (2008) afirma que há uma valorização para a exibição do corpo da mulher, mas que essa exibição é marcada pelo comedimento relativo a uma representação de feminilidade, que valoriza a heterossexualidade compulsória, a delicadeza e a graciosidade como virtudes. Esta “estratégia de comedimento”, explica a autora (p. 247), “pode ser identificada em várias instâncias que atuam na educação dos corpos, como, por exemplo, na alimentação, no vestuário, na arquitetura, na educação formal, na religião, na família, entre outras”.

Esse comedimento na exibição do corpo foi identificado nas alunas delicadas e protegidas e contribui para entender a dinâmica da minimização como proteção da própria feminilidade. Elas definem a situação da aula como um espaço não adequado à sedução, se esquivando de vexames, vergonha e embaraços. A forma desinteressada como manipulam, como cuidam do corpo, reflete um empreendimento para salvaguardar perante si mesmas e perante os outros (as alunas vaidosas, fortes e ativas e os meninos grosseiros, brutos) sua noção de feminilidade (isto é, mulher com compostura, heterossexual, delicada, graciosa).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A apresentação e a discussão dos resultados permitem concluir que a representação social das adolescentes nas aulas de Educação Física, na turma de 3º ano do Ensino Médio estudada, é tributária das manipulações corporais realizadas/desenvolvidas pelas alunas. As duas caras verificadas (1 – aluna vaidosa, forte e ativa; 2 – aluna delicada e protegida) e suas correspondentes linhas de atuação revelaram que a maneira de manipular ou cuidar do corpo pelas aulas está articulada com a representação social, isto é, com o esforço para fazer valer a impressão que desejam que os outros tenham delas. Enquanto as alunas vaidosas, fortes e ativas expõem o corpo nas interações, usam acessórios, roupas e cuidados que põem em destaque a aparência, trazem marcas corporais (piercing, tatuagens), as alunas delicadas e protegidas minimizam a apresentação do corpo nas interações, são discretas em relação ao uso de roupas, acessórios e cuidados com a aparência.

Concluiu-se também que as escolhas das manipulações corporais (linhas de atuação) não podem ser interpretadas somente como substância das alunas, mas como estratégias relacionais de colocação de si nas aulas de Educação Física, pois são escolhidas e realizadas/desenvolvidas nas interações (em relação) com as outras pessoas nas (situações das) aulas de Educação Física. Tanto as alunas vaidosas, fortes e ativas (que procuram fundamentar o corpo como capital – um acessório da presença de uma mulher forte, independente, ativa), como as alunas delicadas e protegidas (que buscam consolidar a imagem do corpo comedido – protegido das angústias e vergonhas, deixando a salvo o ideal de feminilidade) adotam essas linhas de atuação em relação umas às outras e em relação aos meninos da turma, como também consideram as suas definições da situação (escolar).

Por fim, tornou-se possível concluir que a linha de atuação desenvolvida pelas alunas impacta sobre o envolvimento nas atividades das aulas de Educação Física. Esta conclusão, apesar de não ter vínculo com os objetivos inicialmente apresentados, revela uma possibilidade continuação da pesquisa, no sentido de verificar até que ponto as representações das alunas estão articuladas com o desenvolvimento das aulas de Educação Física nas escolas.

NOTAS

* Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Marechal Cândido Rondon, Paraná, Brasil

** Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Marechal Cândido Rondon, Paraná, Brasil

1 A definição de Goffman (1988) para estigma é de uma marca ou impressão. Em sentido atual, quando uma marca ou atributo passa a desqualificar outros, separando os indivíduos da categoria dos normais, diz-se que são estigmatizados. Isto ocorre porque “a discrepância entre a imagem social virtual, que é a imagem que gostaríamos que os outros tivessem, e a imagem social real, o que realmente se prova possuir, pode esmagar a identidade social, afastando o indivíduo da sociedade” (p. 28).

2 O termo marcas corporais é utilizado aqui no sentido da formulação de Le Breton (2003, p. 34), quando o autor relata que o corpo, como uma superfície de projeção de si aos outros, é queimado, mutilado, varado, talhado, tatuado, entravado em trajes impróprios.

THE BODY MANIPULATIONS ON THE SOCIAL IMAGE REPRESENTATION OF FEMALE STUDENTS IN PHYSICAL EDUCATION CLASSES

The objective of the work was to analyze the social image of teenage girls in the Physical Education classes of the senior year of High School in a State school in the city of Marechal Cândido Rondon, Paraná, in order to verify the articulations between the representations of the students and the body manipulations produced by them to validate the image demanded in the interactions experienced in class. Referring to the notions of representation and of body manipulations, observations and semi-structured interviews were performed to describe and analyze the attributes of the face presented by the students and the schemes of their acting line in relation to the body manipulations. Having developed the analysis in categories, it was concluded that the representation of the social image of the teenage girls in Physical Education classes is a consequence of the body manipulations performed by them, and the choices of these manipulations are characterized as strategies related to other people in the group and the educational situation.

KEYWORDS: Body Manipulations; Representation; Social Image; Female Students; Physical Education.

LAS MANIPULACIONES DEL CUERPO EN LA REPRESENTACIÓN DE LA IMAGEN SOCIAL DE ALUMNAS EN LAS CLASES DE EDUCACIÓN FÍSICA

RESUMEN

El objetivo del trabajo fue analizar la imagen social de niñas (adolescentes) en las clases de Educación Física, en un grupo de 3º ano de la Enseñanza Media de un Colegio Estatal en la ciudad de Marechal Cândido Rondon, Paraná, buscando verificar la articulación entre las representaciones de las alumnas y las manipulaciones corporales producidas por ellas para hacer valer la imagen requerida en las internaciones vivenciadas durante las clases. Teniendo como referencia las nociones de representación y de manipulaciones corporales, fueron realizadas observaciones y entrevistas semi-estructuradas para describir y analizar los atributos de la cara presentada por las alumnas y los esquemas de la línea de actuación de ellas en relación a las manipulaciones corporales. Desarrollado el análisis en categorías, fue posible concluir que la representación de la imagen social de las adolescentes en las clases de Educación Física es tributaria de las manipulaciones corporales desarrolladas por ellas y que las elecciones de estas manipulaciones se caracterizan como estrategias relacionadas a las otras personas del grupo y a la definición de la situación.

PALABRAS-CLAVE: Manipulaciones corporales; Representación; Imagen Social; Alumnas; Educación Física.

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Recebido em: 26/06/2009

Revisado em: 12/09/2009

Aprovado em: 18/09/2009


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Mauro Myskiw

Universidade Estadual do Oeste do Paraná

Centro de Ciências Humanas Educação e Letras

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