O CONTEÚDO “DANÇA” EM AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA: TEMOS O QUE ENSINAR?*

LÍVIA TENÓRIO BRASILEIRO **

RESUMO

Analisamos a dança como conteúdo nas aulas de Educação Física escolar por reconhecermos a ausência de discussões sobre o assunto. Apesar de a dança estar presente na escola, seja na Educação Física, seja na Educação Artística/Arte Educação, ela é descontextualizada da discussão sobre seleção cultural, realizada pelos currículos escolares.

PALAVRAS-CHAVE: Dança - Educação Física - Prática pedagógica.

INTRODUÇÃO

O presente estudo aborda a questão do conteúdo “dança” no ensino da Educação Física escolar. Consideram-se aqui as possibilidades, os limites e as exigências da referência da Teoria Crítica. Nossa discussão está inserida no Capítulo I da dissertação que lhe deu origem, “Uma caminhada em construção”, em que apresentamos as dimensões da problemática do tema. Nesse capítulo explicitamos as categorias que permitiram a reflexão articulada acerca da formação, do currículo, da Educação Física e da dança e acerca do reconhecimento desta última como conteúdo escolar. A discussão da dança como conteúdo nas aulas de Educação Física nos fez refletir sobre como ela se insere no espaço escolar e como os profissionais da área vêm assumindo esse conteúdo.

A DANÇA FAZ PARTE DO UNIVERSO ESCOLAR?

Delimitamos o conteúdo “dança”, em nossa pesquisa, por reconhecer a ausência de discussões sobre o tema no espaço escolar. Apesar de sua presença na escola, seja na Educação Física, seja na Educação Artística/Arte Educação, a dança é descontextualizada da discussão acerca da seleção cultural, realizada pelos currículos escolares.

A escolha desse tema para nosso dado empírico de pesquisa deve-se ainda ao nosso reconhecimento de que a dança vem sendo marginalizada nas aulas de Educação Física escolar. Acompanhamos, como observadora participante, as atividades da disciplina Prática de Ensino II - 1998, da licenciatura em Educação Física/ UFPE. A disciplina incluía um espaço de intervenção em uma es-cola da rede pública estadual de Pernambuco. A pesquisa, intitulada A Prática Pedagógica e a Política Educacional na Formação Humana e na Produção do Conhecimento, teve como intenção o estudo dos fatores externos e internos à escola. A dança constituiu o conteúdo privilegiado desse estudo nas intervenções junto aos escolares. Nesse processo pudemos reconhecer a ausência desse conhecimento como prática pedagógica sistematizada no espaço escolar, bem como a não-apropriação do mesmo, por parte dos acadêmicos em formação.

Somente em recentes processos de discussão, para além da Educação Física, é que a dança veio inserir-se como conteúdo nos currículos escolares, como prática pedagógica sistematizada. E é esse movimento recente que nos faz refletir sobre sua posição como conhecimento a ser tratado nos espaços escolares.

Gehres (1997, p. 36) descreve a situação da dança nas escolas estatais das redes de ensino fundamental e médio do Brasil, apresentando dados que apontam para:

• a predominância da dança no ensino fundamental do Brasil como uma atividade extracurricular, estabelecida de forma diversificada, com maior incidência dos centros de arte para escolares da rede municipal ou estadual e dos grupos de dança com apoio estrutural e pedagógico;

• do ponto de vista curricular, a predominância da dança como conteúdo da disciplina Educação Física e sua introdução incipiente como conteúdo da disciplina Educação Artística. Contudo, a observação da história dessas duas disciplinas nas escolas brasileiras (Barbosa, 1978) revela a hegemonia da ginástica e do desporto como conteúdos da Educação Física e a do desenho geométrico como conteúdo privilegiado pela Educação Artística.

O que vamos observar é que, apesar de a dança estar situada, desde 1971, como unidade da disciplina Educação Física, a prerrogativa concedida aos demais conteúdos da Educação Física escolar, destacada acima, é facilmente observada no dia-a-dia das escolas do Estado de Pernambuco. A dança é minimamente tratada como componente folclórico no interior das escolas, seja pela Educação Física ou pela Educação Artística/Arte Educação; raramente é valorizada por ter um conhecimento próprio e uma linguagem expressiva específica. Ela é reconhecida como atividade extra-escolar, extracurricular etc.

Ao consultar os professores de Educação Física da rede estadual de ensino, pudemos reconhecer elementos já apresentados na literatura específica sobre a dança, que já conta com um pequeno acervo bibliográfico no espaço escolar, especialmente na Educação Física.

As respostas obtidas do questionário evidenciaram que nenhum dos que retornaram esse instrumento de coleta trata o conteúdo “dança” nas aulas de Educação Física e apenas um indica recorrer à dança em festividades e datas comemorativas.

Dentre os questionários devolvidos com as respostas, tivemos apenas um professor cuja carga horária incluía treinamento de alguma modalidade esportiva; os demais exerciam toda a sua carga horária em aulas de Educação Física com o alunado. Esse é um dado interessante quando reconhecemos o grande número de professores com carga horária em disponibilidade para atender a grupos de treinamento, sendo identificado um grande privilégio a essas atividades, em detrimento das aulas de regime curricular obrigatório. E mesmo quando esse treinamento pode adotar o conteúdo “dança”, a grande prerrogativa é para as modalidades esportivas, visto que o projeto de grupos de treinamento dá base, na escola, à seleção das equipes para os jogos escolares. Essa centralidade está refletida em toda a discussão histórica da área, e decorre do privilégio, desde a década de 1960, às modalidades esportivas. Mesmo com a discussão ampliada acerca dos conhecimentos que perpassam as aulas de Educação Física, esse ainda é um forte aspecto delimitador da área.

Essa consulta aos professores da área permitiu-nos dialogar com a literatura existente, bem como formular a proposta de trabalho da nossa intervenção em campo. As respostas obtidas possibilitaram-nos conhecer as referências acerca da temática “dança” no espaço escolar, as quais podem ser exemplificadas nestes fragmentos:

– Você trata o conteúdo “dança” na sua escola?

– Infelizmente não foi possível vivenciar o conteúdo dança na escola, por muitos motivos: 1º) espaço físico: o salão existente na escola passou a funcionar como sala de aula para o primeiro grau menor; 2º) material humano: turmas mistas, faixa etária bastante diferenciada; enfim no início do ano, ao apresentar os conteúdos, não houve boa aceitação da dança, principalmente, pelos alunos de idade mais elevada. (Profª A-Q)

– Sim [... mas] devido ao espaço físico esse conteúdo fica muito limitado (ocasiões de festas e datas comemorativas). (Profª B-Q)

– Não. Quando trabalhava na escola, a mesma não oferecia local adequado, nem tampouco materiais para poder implantar essa modalidade [...]. (Profª C-Q)

– Não: falta de conhecimento; espaço; dificuldades com turmas mistas (preconceito). (Profª. D-Q)

Se recorrermos à literatura existente, vamos observar que um dos fortes argumentos para a inexistência do conteúdo “dança” nas aulas de Educação Física são as questões estruturais, de conhecimento e de aceitação por parte dos alunos, especialmente do sexo masculino. Essas alusões, portanto, estão em consonância com as respostas obtidas.

No que se refere à questão estrutural, quando pensamos em dança, automaticamente, imaginamos uma sala ampla, com piso liso e espelhos por todos os lados, e acompanhada de um som de qualidade – da mesma forma que, tratando-se de esportes, pensamos em quadras sem buracos, com cobertura e demarcação de todas as modalidades esportivas. Essa, sem sombra de dúvidas, não é a realidade das escolas públicas estaduais. O interessante, porém, é que, apesar da estrutura indesejada das quadras, continuamos a tratar o conteúdo esportivo, com seus limites, é claro, e o mais intrigante é que a quadra virou sinônimo de aula de Educação Física. É importante reconhecer ainda que, em muitas escolas, nem quadra existe, ficando as aulas restritas a espaços como pátio, ruas ou praças. Podemos, portanto, perguntar: Não é mais fácil conseguir uma sala do que uma quadra, desde que a estrutura da sala seja menos exigente que a da quadra? E por que não ampliarmos nossa estrutura física para além da quadra, com salas de dança e ginástica? Não queremos aqui fazer uma elucubração e sim mostrar que o espaço físico deve ser pensado como um desafio constante para se obter uma Educação Física que amplie suas referências de conhecimento. O espaço físico/arquitetônico das escolas é estruturado com base nas proposições pedagógicas; logo faz-se necessário uma reflexão ampliada da escola e, especificamente, da Educação Física, a fim de redimensionar esse espaço.

Quanto ao conhecimento “dança” nos cursos de formação em Educação Física, podemos observar um avanço significativo nos currículos. A disciplina Rítmica, anteriormente apresentada por eles, nem sempre era obrigatória para os homens. Hoje, no entanto, existem cursos que possuem tanto a disciplina Dança quanto o futebol para alunos/as. Se considerarmos que o futebol, também, não era obrigatório para mulheres – e, por incrível que pareça, ainda existem cursos que mantêm essa referência –, a diferenciação se tornará ainda mais clara: o futebol está marcadamente nas aulas, seja de professores ou de professoras, mas a dança não. Apesar de reconhecer nesse fato uma conseqüência da questão cultural, temos de confrontá-la. Se admitirmos a dança como conteúdo, teremos de recorrer a ela, assim como recorremos aos demais conteúdos como sendo importantes para a formação das crianças e adolescentes.

Existe uma discussão sobre as aulas orientadas por profissionais com formação não-específica em dança. Esse aspecto precisa ser mais bem discutido no interior dos cursos de formação, porque a não-apropriação do conhecimento sobre a dança tem sido um forte argumento dos profissionais. Questiona-se, também, a metodologia usada por esses profissionais no processo de ensino– aprendizagem. Não fazemos o mesmo percurso dessa discussão, pois, dessa forma teríamos de defender que só os profissionais licenciados em Dança, poucos em nosso país, estariam aptos a oferecer aulas desse conteúdo no espaço escolar. O que nos preocupa é reconhecer com que elementos os profissionais de Educação Física estão se aproximando do trato da Dança nesse espaço!

Entendemos, como Barbosa (1991, p. 6), que "assim como a matemática, a história e as ciências, a arte tem um domínio, uma linguagem, uma história. Se constitui portanto, num campo de estudos específicos e não apenas em mera atividade", sendo a dança uma das formas da cultura corporal de diversos povos inseridas nesse universo da cultura/arte.

Se tomarmos como referência o Brasil, concluiremos que são poucos os cursos de graduação, licenciatura ou bacharelado em Dança, e que eles configuram uma nova demanda nas faculdades de Artes. Porém, desde 1971, a legislação prevê o trato com esse conhecimento em aulas de Educação Física e Educação Artística/ Arte Educação, o que fica explicitado, mais recentemente, nos Parâmetros Curriculares Nacionais.

Não pretendemos aqui entrar numa discussão corporativista para saber a quem pertence esse espaço de intervenção, e sim discutir sobre as possibilidades, já historicamente em construção, de qualificação profissional. A rediscussão acerca da formação profissional em Educação Física deve recuperar as demandas que a área não conseguiu tratar com qualidade e fomentar novas possibilidades.

No que se refere à presença dos homens – turmas mistas – temos uma longa discussão acumulada sobre o assunto. Que importância pode ter a divisão das turmas por sexo, quando, em todo o seu processo escolar e de vida cotidiana, os alunos estão juntos? Isso representa um retrocesso que não se justifica por questões fisiológicas, muito menos psicológicas. A co-educação e a questão de gênero vêm sendo discutidas nas produções acadêmicas da área, podendo ser consultados estudos atualizados, apresentados nos eventos do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, nos seus Grupos de Trabalhos Temáticos.

Saraiva Kunz et al. (1998, p. 27) explicitam essa discussão afirmando que

a E.F., tradicionalmente, encontrou (e isto ocorre vivamente ainda hoje) uma separação de práticas/vivências entre os sexos opostos, que se estabeleceu baseada no preconceito da desigualdade, e mais do que tudo, no da inferioridade feminina. Isto quer dizer que, quando uma diferença entre sexos justifica a (não) participação/vivência de um ou outro sexo em vivências de movimento que lhes proporcionariam descoberta de potencial, estabelece-se a discriminação e não o atendimento à individualidade/ singularidade, como sempre foi reivindicado pelos professores, ou por preconceito, ou por incapacidade de lidar com as diferenças de sexo e/ou de gênero.

Um outro dado interessante exposto por uma das professoras consultadas é a utilização que ela faz da dança, unicamente nos eventos. Isso é curioso, mesmo diante de suas alusões aos limites de trato com esse conteúdo, devido aos espaços físicos da escola. Essa questão é amplamente reconhecida, pois é de conhecimento público o papel das danças nas festividades escolares, incluindo todas as séries. As danças, nesses eventos, são, normalmente, orientadas por professores de Educação Física, o que nos permite afirmar que, apesar de a dança estar presente no espaço escolar, ela é apenas um elemento decorativo. Não se reflete sobre a importância de seu conhecimento para a formação dos alunos.

Apresentamos esse confronto por entendermos que muitos dos problemas que limitam o trato com o conhecimento “dança” ultrapassam a relação específica de conteúdo. Além disso, poucos são os estudos em que se procura analisar as possibilidades de materialização de propostas de ensino, e, mesmo os existentes, apresentam-se sob a referência de modelo.

MAS, AFINAL, O QUE É DANÇA?

Tomando como referência a nossa consulta aos professores, podemos perceber que somente um deles não aponta a dança como um conhecimento a ser tratado nas aulas de Educação Física. Os demais, ao serem questionados a respeito de seu entendimento sobre a dança e do trato com esse conhecimento em aulas de Educação Física, apontam:

Dança são passos cadenciados e subordinados ao mesmo ritmo e compasso de uma música. (Profª A-Q)

Dança: forma de expressão da cultura de um povo, de uma raça, de um determinado lugar, em relação às suas crenças, seus valores, seus medos etc. Nas aulas de E.F. esse conteúdo deve ser tratado de acordo com os interesses e as necessidades dos alunos, levando-se em conta a realidade em que eles se inserem. Deve ter um sentido e um significado, a fim de que o aluno possa fazer uma reflexão crítica e promova mudanças. (Profª B-Q)

A dança traz, nos seus movimentos, fortalecimento muscular, harmonia, habilidade, graciosidade, integridade, ritmo, coordenação, ajudando em todas as atividades de Física e esportes. (Profª C-Q)

As conceituações apresentam diferenciações no que tange ao significado da dança na Educação Física.

Neste estudo não fizemos opção por recuperar a história da dança, por entendermos que existem trabalhos de cunho histórico já publicados no Brasil que apresentam uma reflexão mais aprofundada sobre o percurso da dança e sobre os seus diferentes papéis, ao longo da história da humanidade.

Porém, quando se trata da dança como componente do currículo escolar, e especificamente da Educação Física, verificamos uma parca existência de trabalhos publicados no nosso país. Fizemos então um breve levantamento das publicações em livros, revistas e anais de eventos, incluindo monografias, dissertações e teses que vêm contribuindo para as discussões na área. Apresentamos algumas dessas produções sem fazer distinção de suas aproximações e distanciamentos conosco, porém, reconhecendo-as no processo de discussões da área.

Recuperando as falas dos professores, podemos destacar dois conceitos. O primeiro apresenta a dança como movimento que fortalece, que coordena etc., e, com isso, ajuda a todas as atividades da Educação Física; o segundo, por sua vez, fala da dança como expressão cultural de um povo.

Ao analisar o primeiro conceito, percebemos o reducionismo com que a Educação Física trata desse conhecimento, considerando apenas as suas possibilidades de auxiliar nas habilidades motoras ou de integrar – palavra usual: socializar. Isso significa distanciar a dança de seu universo de conhecimento próprio e retirar dela o seu sentido/significado para atribuir-lhe somente possibilidades de movimento. É fácil comprovar esse reducionismo também pela centralidade, na história da dança, do repertório clássico, que codificou todo o seu movimento. Vale lembrar que a dança clássica é considerada como 'A dança'.

O segundo conceito permite aproximarmo-nos dos estudos que reconhecem a dança como possuidora de uma linguagem própria e expressiva, e como representativa de um conhecimento que conta/representa a história da humanidade.

Temos buscado, ao longo das relações estabelecidas com o universo da dança, confrontar essas discussões reducionistas com aquelas que se ampliam no universo da Arte, tendo o cuidado de não nos distanciarmos do papel do espaço escolar, ou seja, dialogando a partir da Educação com a Arte.

Defendemos o conhecimento “dança” dentro da discussão ampliada da Arte, e compreendemos a dança como algo que excede o dizer em palavras, ou seja, localiza-se no universo da lingua-gem corpórea do homem, que possui códigos universais. Reconhecemos que o universo artístico, de uma forma geral, toma uma reorientação conceitual mundial em que não existe mais uma única referência estética. Essa mudança pode ser observada em diversas ações/significações relativas às produções artísticas.

Não vamos mais a museus simplesmente para 'prestar homenagem' à Arte ou ao Artista, como se estivéssemos participando de um culto. Muito pelo contrário, gostamos daqueles trabalhos que podemos tocar, mexer, apertar; nos quais podemos entrar, ou mesmo escalar. Tampouco assistimos a espetáculos de dança sem que nos envolvamos de alguma maneira. Os melhores são aqueles em que podemos 'entrar na dança', juntamente com os artistas. (Marques,1996, p. 18)

Apesar dessa mudança, Marques assinala que, com relação ao ensino da dança, ainda se valorizam aspectos próprios do século XVIII, como, por exemplo, o destaque à espetacularização e ao aprimoramento técnico. A autora ressalta que

repensar a educação e a dança no mundo contemporâneo, quer no âmbito artístico profissional, quer na escola básica, significa também repen-sar todo este sistema de valores e de idéias concebidos desde o século XVIII e que foram incorporados ao pensamento educacional ocidental. (Marques, 1999, p. 48)

Aulas de dança podem ser observadas em diferentes espaços: academias, estúdios, clubes, escolas etc., e nesses o professor, que ora é bailarino/professor, ora coreógrafo/professor, é a grande referência a ser imitada, tendo no domínio da técnica e de habilidades a sua metodologia, e no repertório clássico o seu privilégio. Embora se observe o crescimento de outros repertórios, esses também têm privilegiado, na sua abordagem metodológica, o ensino de técnicas, a exemplo das danças de salão.

Nas aulas de Educação Física, especificamente, temos observado, pelas poucas experiências relatadas/sistematizadas, o privilégio das danças do universo popular como forma de resgatar a cultura de cada região. Acreditamos na importância de recuperar danças que configurem a história da nossa região e nos permitam uma localização como produtores de nossa cultura. Porém constatamos a necessidade de conhecer um universo mais amplo de referências sobre a dança e seus diferentes repertórios, bem como as possibilidades de improvisação e reconstrução coreográfica dos repertórios já construídos.

Saraiva Kunz et al. (1998, p. 19) corroboram o nosso entendimento de que, através da dança, se procede ao resgate/produção da cultura, sendo esse o objeto da Educação:

[a dança] possibilita a compreensão/apresentação das práticas culturais de movimento dos povos, tendo em vista uma forma de auto-afirmação de quem fomos e do que somos; ela proporciona o encontro do homem com a sua história, seu presente, passado e futuro e através dela o homem resgata o sentido e atribui novos sentidos à sua vida.

Temos nos aproximado também das discussões apresentadas por Marques (1996 e 1999), quando formula a proposta de uma articulação múltipla entre o contexto vivido, percebido e imaginado pelos alunos e os subtextos, textos e contextos da própria dança. O contexto aqui é entendido não como objetivo, mas, sim, como um interlocutor da nossa prática educativa, e a escolha dele não deve estar baseada apenas no interesse motivacional; é preciso que ele exponha significados que elucidem a nossa sociedade, iniciando um processo de problematização. Esse contexto é base para as formulações dos textos, subtextos e contextos da dança. Os subtextos são os aspectos coreológicos, ou seja, os elementos estruturais e socioafetivo-culturais da dança. Os textos são ampliados, indo do universo dos repertórios ao reconhecimento da importância das composições e das improvisações. No contexto da dança estão os seus elementos históricos, culturais e sociais, como o trato com a história, música, antropologia, estética, apreciação, crítica etc.

Em Pernambuco a proposta de ensino da Educação Física desenvolvida pela Secretaria de Educação, Cultura e Esportes-PE, 1987-1991 e recuperada nas gestões posteriores apresenta a dança como uma das formas de atividades expressivas corporais do homem. Junto com outras atividades, ela configura o conhecimento da cultura corporal, e é reconhecida como uma das formas de linguagem do homem, linguagem esta expressiva e representativa de diversos aspectos de sua vida, privilegiadamente de seus momentos festivos. Ao conhecer, interpretar e compreender os sentidos e significados da dança, temos a oportunidade de perceber, através dela, o desenvolvimento cultural de diferentes civilizações.

Faz-se necessário, portanto, o acesso ao universo da dança e a desmitificação de sua imagem apenas como elemento/espetáculo folclórico, normalmente de caráter contemplativo. É preciso passar a entendê-la como conhecimento significativo para as nossas ações corpóreas, que podem ser exploradas pelo universo de repertórios popular, folclórico, clássico, contemporâneo etc., bem como pela improvisação e pela composição coreográfica.

CONCLUSÕES

Ao refletirmos sobre as possibilidades de mudança no trato com o conhecimento nas práticas pedagógicas da Educação Física no espaço escolar, reconhecemos que há muito o que superar na concepção de formação humana e de currículo, pontos discutidos mais amplamente na dissertação. Mas, entrando na nossa especificidade, nos questionamos: Como superar o fato de a Educação Física continuar reforçando práticas pedagógicas assistemáticas?

Os dados apresentados pelas crianças e adolescentes na escola pesquisada permitem-nos pontuar a ausência de aulas dessa disciplina ou a sua assistematicidade. Embora ela seja um componente curricular e apresente-se no interior do projeto escolar, sua existência não está sendo garantida em sua função mínima.

A história da área demonstra os seus avanços e os novos processos de discussão, porém a realidade educacional não nos permitiu ver além do que já se conhece no senso comum: a ausência de aulas ou a aula restrita, no que se refere a conhecimento. O conteúdo se limita ao futebol, queimado, corridas e exercícios, velhos amigos da Educação Física.

Adentrando novamente no nosso conteúdo específico de estudo, voltamos a nos questionar: Como superar o fato de que a dança, quando tratada por profissionais da Educação Física, normal-mente, limita-se a reconhecimento de movimentos? Retira-se dela o seu sentido/significado ou a possibilidade de construí-los, e apegase unicamente às suas possibilidades de movimento, aos seus códigos. Esse é, sem dúvida, um limite explícito na área da Educação Física, que, também, tem sido tratada como um fazer destituído de saber. A questão comprova a necessidade de uma discussão mais aprofundada acerca do trato com o conhecimento “dança” nos cursos de formação de professores de Educação Física.

Reafirmamos, assim, a importância de apreender e vivenciar nossa cultura corpórea através da dança, uma linguagem que o homem construiu e reconstrói/constrói ao longo da sua história.

Ao refletirmos sobre a relação do homem com o mundo, percebemos em Vasquez (1999, p. 73) que "os homens mantiveram e mantêm diferentes relações com [ele]. Diversas são também nelas sua atitude para com a realidade, as necessidades que tentam satisfazer e o modo de satisfazê-las".

Entre essas relações, o autor destaca: a relação teóricocognoscitiva (que permite compreender a realidade); a relação prático-produtiva (através da qual o homem intervém materialmente na natureza); e a relação prático-utilitária (por meio da qual ele con-some os bens produzidos). Dessa forma, entendemos que a dança é uma produção do homem em suas relações com o mundo e que explicita diferentes relações na sua constituição.

Vazquez (1999, p. 47) ainda contribui para a discussão sobre a estética, sendo essa "a ciência de um modo específico de apropriação da realidade, vinculado a outros modos de apropriação humana do mundo e com as condições históricas, sociais e culturais em que ocorre".

É preciso que se explicite que todos vivemos situações estéticas nas nossas vidas, por mais ingênuas ou espontâneas que pareçam, a exemplo da nossa relação com a música, a imagem corporal etc. Vivemos, portanto, sob forte influência ideológica estética, sendo a Educação Física e a dança um campo muito profícuo para essas apropriações estéticas.

Dessa forma, reafirmamos a necessidade de se discutir a educação no interior da escola, compreendendo como ela constrói a concepção de homem e de mundo, que é refletida nos projetos científicos, políticos, pedagógicos, éticos e estéticos. Acreditamos também na importância de se criarem novas possibilidades para facilitar a expressão original de cada aluno e dar a eles o sentido de grupo social, à medida que lhes permitam reconhecer-se como agentes que vivenciam, refletem e reelaboram sua cultura.

Essa é, sem dúvida, uma discussão a ser ampliada, pois, ao refletir sobre a questão “Temos o que Ensinar”, teremos de fazê-lo para além dos limites das quadras da Educação Física.

 

Dance in School Physical Education Classes: do We Have Anything to Teach?

ABSTRACT

We have analyzed dance as a content in School Physical Education Classes. We understand that there is a lack of discussion on dance as a content to be approached in the school environment. We recognize its presence at school, either via Physical Education classes or via Art Education classes. Its presence, however, occurs out of the context of the discussion about cultural selection, undertaken by the school syllabi. This study is part of the dissertation “Knowledge in the school syllabi: the content dance in physical education classes on an analytical perspective”.

KEY WORDS: Dance - Physical Education - Pedagogical practice.

 

El Contenido Danza en Clases de Educación Física: ¿Qué Tenemos para Enseñar?

RESUMEM

Analizamos la danza como contenido en las clases de Educación Física Escolar. Delimitamos el contenido Danza, en nuestra investigación, por reconocer la ausencia de discusiones sobre ésta como contenido a ser tratado en el espacio escolar. Reconocemos su presencia en la escuela, o por vía Educación Física, o por Educación Artística/Arte Educación. Esta presencia, sin embargo, es descontextualizada de la discusión sobre la selección cultural, realizada por los currículos escolares. El estudio es parte constitutiva de la disertación “El conocimiento en el currículo escolar: el contenido danza en clases de Educación Física en la perspectiva crítica”.

PALABRAS CLAVE: Danza - Educación Física - Práctica pedagógica.

NOTAS

* Texto baseado na dissertação O conhecimento no currículo escolar: o conteúdo “dança" em aulas de Educação Física na perspectiva crítica, defendida na Universidade Federal de Pernambuco.

** Professora da Universidade Estadual da Paraíba, membro do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte e mestre em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte: anos oitenta e novos tempos. São Paulo: Perspectiva, 1991.

BRASILEIRO, Lívia Tenório. O conhecimento no currículo escolar: o conteúdo dança em aulas de Educação Física na perspectiva crítica. 2001. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001.

GEHRES, Adriana de F. Dançar nas escolas apesar das escolas: projeto em andamento. In: CONBRACE, 10., 1997, Goiânia. Anais... Goiânia, GO, 1997.

MARQUES, Isabel A. Ensino de dança hoje: textos e contextos. São Paulo: Cortez, 1999.

PERNAMBUCO. Secretaria de Educação, Cultura e Esportes. Contribuição ao debate do currículo em Educação Física: uma proposta para a escola pública. Recife, 1990.

SARAIVA KUNZ, Maria do Carmo et al. Improvisação & Dança. Florianópolis: Ed. UFSC, 1998.

VAZQUEZ, Adolfo Sánchez. Convite à estética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

Recebido: maio de 2003
Aprovado: junho de 2003
Endereço para correspondência:
Lívia Tenório Brasileiro Rua Áureo Xavier, nº 540, Cordeiro Recife –PE
CEP: 50721-050

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